Durante a inauguração da ponte que liga Xambioá, no Tocantins, a São Geraldo do Araguaia, no Pará, um grupo de ex-moradores da Serra dos Martírios/Andorinhas aproveitou a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para entregar uma carta aberta cobrando providências sobre um conflito que já dura quase três décadas.
A carta, assinada pela Associação de Moradores Extrativistas e Produtores do Vale da Sucupira da Serra das Andorinhas (AMEPVSSA-PA), relata que mais de 70 famílias foram removidas da área no fim dos anos 1990, quando foi criado o Parque Estadual Serra dos Martírios/Andorinhas. Segundo o documento, muitas delas deixaram suas casas sob ameaças, denúncias de queimadas de moradias e sem o recebimento de indenização ou oferecimento de reassentamento adequado.

O texto relembra que, desde então, promessas foram feitas, reuniões ocorreram e órgãos públicos foram acionados, mas poucas medidas saíram do papel. A associação cita episódios de 2001, 2010, 2014 e 2017, quando diferentes tentativas de avançar no processo de reassentamento foram anunciadas, porém interrompidas por falta de infraestrutura, de áreas disponíveis ou de articulação entre órgãos como INCRA, ITERPA e Ministério Público.
As famílias pedem que o Governo Federal retome com urgência o processo de reassentamento em áreas adequadas e estruturadas, enfatizando que não buscam privilégios, mas condições mínimas de vida, produção e segurança. A carta afirma que já são mais de 30 anos de espera e que muitos filhos cresceram sem ver o direito de seus pais ser reconhecido.
O documento foi entregue pessoalmente ao presidente Lula durante o evento, como forma de chamar atenção do Governo Federal para um impasse que, segundo os moradores, segue sem solução enquanto o parque estadual preserva a região, mas os antigos habitantes permanecem sem reparação.
Assinada por Gisela Guimarães, presidente da AMEPVSSA-PA, a carta conclui pedindo “uma ponte de justiça” para as famílias da serra, destacando que progresso não pode ocorrer à custa do esquecimento de quem perdeu tudo quando o parque foi criado.
Confira a carta na íntegra
Senhor Presidente,
É com respeito, esperança e também com dor que as famílias da Serra dos
Martírios/Andorinhas, no sudeste do Pará, dirigem-se a Vossa Excelência. Saudamos sua presença na região Norte, na inauguração da ponte entre São Geraldo do Araguaia e Xambioá, e aproveitamos este momento histórico para trazer à luz uma ferida antiga — uma ferida aberta há quase trinta anos e que ainda não cicatrizou.
Nós, que integramos a Associação de Moradores Extrativistas e Produtores do Vale da Sucupira da Serra das Andorinhas (AMEPVSSA-PA), somos herdeiros de uma história marcada por resistência, injustiça e esquecimento. Vivíamos há décadas na serra, cultivando a terra, criando nossos filhos, respeitando a floresta e suas águas. Ali, onde hoje está o Parque Estadual Serra dos Martírios/Andorinhas, existiam comunidades inteiras — simples, trabalhadoras e profundamente ligadas àquele chão.
Mas, quando o parque foi criado, no fim dos anos 1990, nossa vida virou de cabeça para baixo. Mais de 70 famílias foram expulsas, muitas sob ameaças e com as casas queimadas. Ficamos sem terra, sem indenização justa e sem reassentamento. Desde então, temos vivido de promessas que não saem do papel.
De lá pra cá, senhor presidente, passamos por reuniões, ofícios, audiências públicas, vistorias técnicas e promessas formais de reassentamento — quase todas interrompidas pela burocracia e pela falta de vontade política.
Em 2001, uma reunião em São Geraldo do Araguaia registrou que o INCRA não havia cumprido nem a entrega de cestas básicas prometidas. O ITERPA, que deveria indicar áreas para reassentamento, não apresentou nenhuma disponível. O Ministério Público sequer compareceu.
Em 2010, a Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo reconheceu a urgência de reassentar 170 famílias da serra. Passaram-se 15 anos desde então, e continuamos onde sempre estivemos: à margem das decisões.
Em 2014, o governo estadual anunciou um valor de R$ 18,9 milhões em indenizações para 138 famílias. A esperança durou pouco — muitas não receberam nada, e outras foram indenizadas com valores muito abaixo do prometido.
Mais tarde, em 2017, o INCRA iniciou tratativas para adquirir a Fazenda Estrela, no município de São Geraldo do Araguaia, como área de reassentamento. Mas a própria associação não foi sequer informada sobre as visitas técnicas. Quando a Defensoria Pública foi ao local, concluiu que a fazenda era inabitável: sem estrada, sem escola, sem posto de saúde, sem nenhuma infraestrutura mínima.
Senhor Presidente, nós não pedimos luxo, apenas terra para viver, produzir e criar nossos filhos com dignidade. Queremos o reassentamento em áreas adequadas, com condições reais de trabalho e sobrevivência. Queremos o direito de recomeçar — algo que, por 30 anos, nos foi negado.
Hoje, enquanto o país se orgulha de construir pontes que unem cidades e pessoas, nós pedimos que também se construa uma ponte de justiça e reparação com as famílias da Serra das Andorinhas. Porque não há progresso verdadeiro quando a dor de alguns é esquecida para que outros avancem.
Senhor Presidente, o Parque Serra das Andorinhas protege a floresta, os sítios arqueológicos e a memória dos povos antigos — mas quem protege as pessoas que sempre viveram ali? Quem nos olha quando os discursos acabam e as câmeras se apagam?
Sabemos de sua trajetória de luta e compromisso com o povo simples. Por isso, acreditamos que o senhor pode ser o presidente que finalmente transformará essa história de sofrimento em um novo capítulo de justiça.
Pedimos que o Governo Federal, junto ao INCRA, ITERPA, SEMA, Ideflor-Bio, Ministério do Meio Ambiente e demais órgãos envolvidos, retome os trâmites do reassentamento das famílias da Serra das Andorinhas com urgência — e que isso seja feito com transparência, diálogo e humanidade.
As famílias da serra já esperaram tempo demais. São mais de três décadas de promessas, de filhos que cresceram sem ver o direito dos pais ser reconhecido. Não queremos mais esperar. Queremos viver.